14.8.05

Pelo Ralo

Era uma noite fria, chuvosa e posterior a uma outra que fora cheia de risos, amigos e revelações. E como nada é pra sempre, o hoje chega quebrando expectativas e verdades tidas como póstumas. Agora ela estava sozinha. Não tinha mais festa, não tinha mais riso. Era assim só, a chuva e Paula.
Uma Paula que tenta estudar Hstória. E sente que ela é a História, que pode e sabe todos os nomes e todos os fatos. Percebe que talvez preferiria que sua vida fosse assim: fatos. Impessoal, imparcial, cronometrada. Sempre na terceira pessoa do plural. Daí então ela falaria das consequências dos atos deles. Finalmente saberia quando e como terminar aquilo que eles começaram. Porém, sua vida é na primeira do singular, quase esgoísta. E ela pendura situações dor-de-cabeça no varal, esperando que um dia elas sequem, como se por mágica. Tem piedade e compaixão. Mas vê que a História é cruel; guerras, extermínios, emboscadas, golpes de poder e traições. Finalmente, a menina entende que tem que ser mulher e o que isso significa.
Anda de pés descalços no chão frio, não tem medo de adoecer. Utopia jovem: invencíveis e inquebrantáveis. De moleton e camiseta, é moleca, por vezes quase infantil. Paula atravessa a sala, vai pra o quarto. Ele deixa trasparecer Paula. Confusa, antitética e estudiosa. Surge na garota a dúvida, Tom Jobim ou Pumpkins? Liga o rádio que toca baixinho a escolha do momento: Samba de uma nota só. Prende-se um tempo analisando o dia anterior e o que fará no seguinte. Decisões a serem tomadas... e logo, pensa. Ela não tem tempo a perder. Já tem seus dezessete anos e sente-se idosa. Quer tudo ao mesmo tempo e agora, senão, nunca mais. E que nada do que possui é bom ou o bastante pra ela. Paula é ansiosa. E sabe disso. Deixa-se relaxar e ouvir a música. Quem quer todas as notas ré, mi, fá, sol, lá si, dó; acaba sem nenhuma, fica numa nota só. Ela então, talvez somente por este segundo, entende a insegurança.
Fecha os olhos. Tenta esquecer seus problemas. Tenta desconectar-se de seu passado. Tenta não existir. Sua tranqüilidade é repentinamente interrompida por alguns milésimos de segundos. Sente os olhos fechando mais forte, a boca abrindo. E vem o que ela mais temia. Paula espirra. Levanta, vai lavar o rosto. Deseja que junto com água desça para o ralo suas preocupações, seu mau-humor, sua prepotência, sua imaturidade, sua singulariedade. Inconscientemente, deseja que a água leve sua adolescência embora. E alguns anos mais tarde, desejará largar a vida, estudar História, tomar um Cebion, ouvir Tom e cantar o passado.