26.12.05

Damascos

- Mas Maria Cláudia, o que foi que eu fiz? Não me olha assim!!
Não era de se esperar que Carlos fizesse alguma coisa errada.
-Um sujeito promissor, esse Carlos. - era constantemente abordado.
Educado nas melhores escolas, apreciador das belas artes, fluente falante de quatro línguas, amante dos livros. Funcionário exemplar e empenhado, em constante desenvolvimento. Promissor, esse rapaz Carlos. Maria Claúdia nada tinha do que reclamar também. Nos restaurantes, pagava a conta; no carro, abria a porta. A fim de evitar atritos, para o sogro era Vasco, para a namorada fã de Caetano. E, ah, que olhos!
Maria Cláudia era filha do dono da empresa de engenharia na qual Carlos trabalhava. Mas não pense você que era essa a "promessa" de Carlos. Não fazia seu feitio. Querido pelos colegas de trabalho, adorado pelas vizinhas idosas. Apartamento próprio e decorado no Leblon. Carro zero e coleção de Cds completa dos Bee Gees.
Carlos e Maria Cláudia se conheceram em uma festa da empresa, cuja nova filial estava sendo inaugurada em Cabo Frio. Traje de gala. Carlos ficou muito bem de terno com a gravata escolhida pela mãe e elogiada por Maria Cláudia - cor de damasco, que excêntrico, contrasta com seus olhos!
O que poderia ter Carlos errado? Estavam de volta a Cabo Frio, três exatos anos após a festa de inauguração. Coincidência? Claro que não. Conseguira suadamente reservas para o dia 18 de maio no hotel e restaurante que Maria Cláudia tanto gostava, e tinha um propósito.
Escondera o propósito (de brilhantes, escolhido pela mãe, ainda não elogiado por Maria Cláudia) na musse de damasco, contratara um quarteto de cordas para tocar a mesa. Dois violonistas, uma bonita mulher na viola, um violoncelista com um grande bigode ruivo-damasco acompanhado do caótico invasor da tuba. (Veríssimo mandou lembranças.) Clichê, é verdade. Mas criatividade ou originalidade não faziam o feitio de Carlos, funcionário promissor, marido promissor. Não se ajoelhara, é fato. Como se fizesse diferença... Será que era isso? Só podia ser, porque, apesar de assitir o especial do Roberto Carlos no fim de ano e ter uma orelha ligeiramente díspare da outra, Carlos não fazia o feitio do cara a ser dispensado na frente dos músicos do Recital de Veríssimo, em Cabo Frio, ao gosto azedo de damasco. Maria Cláudia devia se explicar.
Ela ainda o fitava atônita, o anel na colher, musse de damasco na boca. Bom, ela não esngasgou, ou o engoliu, pensou aliviado, isso daria um trabalho... lavagem estomacal, e eu ando sem tempo para hospitais...
- Damascos, Carlos, damascos... - falou suspirando.
- Eu sei, meu amor, é o seu preferido.
- Damaaaaas...
Cabeça na taça de damasco. Damasco maculando a toalha branca de seda. O rebelde da tuba solta um gritinho de horror.
Não era o preferido. Era o corante letalmente alérgico. Boa memória não era do feitio de Carlos, o então homicida promissor.